O
beija - beija - Lygia Di Lorenzo
Oliveira
A cidade se prepara para a
semana mais importante do
calendário. A última
semana de setembro. Num desses
dias, dia 29, é o dia
do grande acontecimento religioso.
Um povo fervoroso da Igreja
Católica, que há
muitas gerações
sucessivamente, comemora o
dia de Santa Clara do Tugúrio,
cidade encravada na Serra.
Gente de arraigada tradição,
tanto nos costumes familiares
como nos sociais, mais ainda
na religiosidade.
¾ Este ano vamos caprichar
nos festejos para homenagearmos
nossa Santa condignamente!
¾ Pode ficar sossegado
Sr. Vigário. Vamos
agradecer muito à Santa
Clara. Se não fosse
pela proteção
dela, nossa Padroeira, estaríamos
todos mortos. Falou a zeladora
da igreja. Era o braço
direito do pároco,
um homem já beirando
os oitenta. Padre há
mais de cinqüenta anos
naquela pequena cidade, daqueles
antigos, muito piedoso e muito
severo. Ainda usava palavras
cortantes, ameaçadoras
em seus sermões, como
"o rabudo, o chifrudo
está à espreita,
ronda vocês, meus irmãos.
Um descuido, ele leva pro
tacho fervendo àqueles
que não temem a Deus.
Àqueles que só
querem gozar a vida".
O povo, humilde, de pouca
escolaridade, sitiado naquela
grota da serra, seguia cordeiramente
o pastor.
¾ Você já
reuniu as zeladoras todas?
E senhor Tarciso com os homens
da Irmandade?
¾ Padre Bento! O senhor
não se lembra? Contei
pro senhor que as reuniões
foram no sábado passado!
¾ Hum! É verdade.
Como estão os preparativos?
¾ Este ano vai ser
magnífico, ficará
na história. Pode ficar
tranqüilo, há
um mutirão de fiéis
ajudando, recolhendo donativos,
organizando a Missa Campal,
a Procissão dos Anjos
de Santa Clara. Serão
cem crianças vestidas
de anjos. O coro então...está
lindo, muito bem ensaiado.
A Santa terá uma homenagem,
que expressará a nossa
gratidão eterna!
Tudo aconteceu nas últimas
chuvas do ano passado. Começou
a chover sem parar, dias e
dias. Parecia que Deus queria
repetir o grande dilúvio.
O temor estampado no rosto
das pessoas. A cisma corria
à boca-pequena: será
que Deus quer nos castigar?
Os picos da Serra vertiam
água como se fossem
vulcões. Ao Invés
de fogo, lava, eram estrondos,
colunas de água que
desciam vertiginosamente pelas
encostas.
A cidade, na grota, recebia
as águas como se fossem
rios caudalosos despencados
do céu.
¾ Mãe, estou
com medo! Falavam as crianças.
¾ Eu também,
diziam os jovens.
Os velhos rezavam diante da
imagem de Santa Clara acompanhados
pelos outros adultos. Dentro
das casas, sem exceção,
todos ajoelhados diante da
imagem, com terço nas
mãos e velas acesas.
¾ Ave Maria! Cheia
de graça...num coro
cada vez mais vigoroso.
As avós e as mães
queimavam as palhas-bentas
recolhidas na última
Sexta-feira Santa.
A Igreja também lotada
de fiéis conduzidos
pelo padre clamavam à
Padroeira.
¾ Ave Maria... Salve
Rainha, Mãe de Misericórdia...
Santa Clara, clareai, vai
chuva vem sol. Santa Clara,
clareai, vai chuva vem sol!
Todos cantando, e o céu
estalando, a terra tremendo.
Alguns tinham a impressão
de que os picos da Serra,
de tão molhados e portanto,
amolecidos, poderiam rolar
as pedras e a lama os cobriria.
Seria o cobertor da morte.
De repente, um estrondo, um
barulho ensurdecedor. Escuridão.
Só a luz das velas;
e as águas desceram
do céu.
Era uma enorme tromba-dàgua.
As nuvens carregadas, muito
baixas bateram no pico mais
alto da Serra. A represa rompeu?
Todos fecharam os olhos, elevaram
a Deus suas preces e uníssonos
gritaram: Santa Clara! Abriram,
e depois de uns segundos,
viram que estavam todos no
mesmo lugar. Graças
à Santa.
A nuvem havia batido sim,
na montanha, mas caíra
do lado oposto ao da cidadezinha,
nas costas dos picos que cercam
o lugarejo.
¾ Louvado seja o Senhor!
Graças à Santa
Clara!
¾ Milagre! Ela ouviu
nossas preces! Ela nos salvou!
¾ Ave Maria! Graças
vos damos Soberana Rainha,
pelos benefícios que
recebemos de vossas mãos
misericordiosas!
O povo inteiro rezava e agradecia
chorando. Muitos contavam
as promessas feitas à
Santa.
¾ Eu prometi a ela
que rezarei de joelhos. Subirei
a escada da igreja.
¾ Prometi-lhe subir
ao Santo Cruzeiro da Serra
com uma pedra na cabeça,
rezando. Vou cumprir minha
penitência no seu dia,
em setembro próximo.
¾ Já eu, vou
ficar até o dia da
Padroeira sem comer doce!
Todos haviam feito pedidos
e promessas.
Meia hora depois do susto,
o padre ao terminar a oração
da ladainha, pediu silêncio
por uns instantes para que
todos pudessem fazer uma reflexão
e agradecer o milagre.
¾ Foram as mãos
de Santa Clara que protegeram
seu povo, ela desviou as nuvens
para que chocando-se com os
picos da Serra, caíssem
do lado de lá. Foi
um milagre, tenho certeza!
Ela ouviu o clamor deste povo
religioso. Fervoroso!
Eu também fiz uma promessa,
no dia da Santa, todos a reverenciarão.
Entre todas as homenagens,
prometi-lhe que, vocês
em agradecimento, beijarão
as fitas que saem debaixo
de seus pés santos.
Todos deverão, de joelhos,
desde a porta da igreja, chegar
até o altar e beijar-lhe
os pés, ou melhor,
as fitas. Será um ato
de humildade, de fé
e gratidão.
Todos comentaram que a promessa
era dele, mas a penitência
seria cumprida pelo povo.
Isso seria o mínimo
que poderiam fazer por tão
grande bênção
recebida: a salvação
de toda a cidade.
¾ E o altar dona Angélica?
Quero bem alto e bonito, para
que todos vejam Santa Clara.
Também é preciso
organização
na fila do beija-beija, para
que não haja tumulto.
¾ Tudo vai sair como
o senhor mandou!
Foi um sucesso a festa. Veio
gente da região toda;
até mesmo os filhos
da terra que estavam morando
longe.
Na hora marcada, a bênção,
as orações,
os cantos, os fogos, etc.
O povo emocionado participava
de tudo.
Para terminar, deu-se o beija-beija.
Até as criancinhas
foram levadas ao pé
do altar para beijar a fita
e serem abençoadas
pela Santa.
O pároco cansado da
semana intensa de programação,
mas feliz pelo acontecimento
nunca visto igual. Milhares
de pessoas participaram fervorosamente.
¾ Doutor, há
cinco dias que estou com os
lábios e até
a língua doendo!
¾ Vamos ver! Hum...
é uma infecção
causada por um vírus.
Onde você pegou isto
minha filha?
¾ Doutor! Há
outro paciente com problema
na boca, falou a enfermeira.
¾ Doutor! Mais um paciente
com o mesmo problema!
Assim foi um atrás
do outro. O médico
do posto já não
agüentava mais. Mais
de cinqüenta pessoas
por dia. Cada dia aumentavam
os casos.
¾ É uma epidemia,
vaticinou o doutor.
Mandou fazer análise
do material e constatou-se
uma infecção
bucal, que se alastrara. Depois
de identificada o doutor passou
a ministrar o tratamento.
Teve até que pedir
ajuda à Secretaria
do Estado, que lhe enviou
mais profissionais, material
para análise e remédios.
Após as análises
do material coletado, ficou
constatado que o contágio
foi no ato de beijar a fita
no dia da santa. A epidemia
foi debelada.
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Um
Frango Vai ao Doutor - Lygia
Di Lorenzo Oliveira
Santo Deus! Um frango vai
ao doutor?
É isso mesmo! Ela conta
até hoje esse fato
acontecido quando ela ainda
era muito jovem!
Ela estava casada há
pouco tempo, uns cinco meses.
Certo dia, passou na rua um
senhor da roça com
um varal de frangos. Ofereceu-lhe
por um bom preço.
Ela gostava muito de frango
caipira, quis comprar. Primeiro,
porque deu uma vontade de
comer esse tipo de frango
que lá onde ela morava
antes de casar, não
havia. Numa capital não
se acha fácil! Depois,
também, porque ela
já estava grávida
de três meses e aprendera
desde pequena, que se devia
comer o que tivesse vontade.
Do contrário, poderia
fazer mal para ela e para
a criança.
Desceu os degraus da entrada
para ver melhor, pois da janela,
olhando lá embaixo,
todas as aves pareciam do
mesmo tamanho.
Qual destes está
mais gordo, maior?
Este aqui, senhora.
Mostrou-lhe um frango de raça
avermelhada.
Ela sabia desde criança,
pois fora criada em fazenda
e depois em sítio,
que o frango branco, da raça
Legourne, não era bom
para corte.
Ih! Mas os frangos estão
muito esquisitos! Estão
soltando água pelo
bico!
Não, dona! Isto é
porque estão pendurados
no varal de cabeça
para baixo. E o calor tá
muito forte.
Sei não!
Pode comprar sem susto!
Ela, muito mineira, falou:
Se o senhor quiser esperar
um pouquinho, mando minha
empregada levar para meu marido
olhar se posso comprar. É
rápido.
Tá bom! Eu espero
Romilda! Corre aqui!
Romilda, de quinze anos, moreníssima,
esperta, magrinha... era um
raio!
Você vai lá,
leva este frango, fala para
ele olhar se posso comprar.
Pois estou achando que não
está bom. Se não
está doente...
A menina chegando lá,
sentou-se com o frango no
colo. Estavam também
três pessoas esperando
na sala.
Quando a porta foi aberta
e saiu o paciente que acabara
de consultar, Romilda levantou-se
e adiantou-se aos outros.
Doutor, dona Laura mandou
eu trazer este frango, que
ela quer comprar, para o senhor
ver se não está
doente!
O doutor-marido ficou furioso.
Fechou a cara e fazendo gestos
com as mãos indicando
para sair, disse-lhe: pode
comprar sim. Estou ocupado!
A menina voltou e narrou para
a patroa tudo. Teve que ficar
sentada esperando até
abrir a porta da sala de consulta.
Por isso, demorei um pouco!
Tudo bem, pode levar o frango
e prendê-lo lá
no quintal.
Pagou o vendedor e entrou
feliz, já com água
na boca, pensando no frango-ao-molho-pardo
que iria comer.
À tarde, depois de
atender seus doentes, o marido
voltou para casa. Ao entrar,
deu com ela na sala.
Você está ficando
louca? Mandar frango no consultório
para eu examinar se não
estava doente? Já pensou
na vergonha que eu passei?
Ela se encolheu, morta de
arrependimento, e aí
pensou: meu Deus! E o pior
é que vão pensar
que eu sou mesmo louca! Pois
ele é psiquiatra!...
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Viuvez
Compartilhada - Lygia Di Lorenzo
Oliveira
Elas pareciam um bando de
tesourinhas reunidas no fio
da rede elétrica, saltitantes,
barulhentas com suas capas
de penas pretas sobre uma
espécie de veste branca.
Não que todas se vistam
iguaizinhas, mas porque estavam
todas de luto. Umas há
mais tempo, outras menos,
e duas delas mais recentes.
Olhando-as naquela sala grande
bem arrumada, enfeitada de
flores, panos bordados em
ponto cruz, sofás com
aconchegantes almofadas em
rendas e crochês, têm-se
a impressão de que
é tudo uma questão
de viuvez compartilhada.
Como assim? Assim, assim!...
Pois não é o
costume delas, todos os sábados
se reunirem para almoçar
juntas, conversar, jogar baralho,
etc.?
Há dois anos o grupo
se mantém inalterado,
não há perdas
ou ganhos. Graças a
Deus!
Dona Melba, a mais velha,
hoje é a anfitriã.
Falante, amável, muito
polêmica, recebe as
amigos na maior alegria.
¾ Que bom que vocês
vieram! Obrigada pelos presentes
e mais ainda pelas presenças.
Até você Marilinha?
Pensei que não viesse,
pois anda tão desanimada!
É assim que deve ser,
ele, lá de cima, deve
estar lhe vendo e feliz por
você ter vindo, afinal
nós todas somos amigas
há tantos anos!
Abraçando uma a uma
cada parceira que entrava:
Milene, tinha certeza que
você não me decepcionaria!
Abrindo os braços:
ah! não! essa é
a maior surpresa, Maria Rita
também? Mora do lado
de minha casa mas nem parece.
Há quanto tempo que
não batemos um papo!?
¾ - Ah, mas hoje não
eu poderia faltar, além
de ter me lembrado de seu
aniversário, fui logo
cedo intimada pela Eda a comparecer.
¾ - Eda, só
você mesma! Mas estou
muito feliz por ter todas
aqui logo hoje.
Alguém gritou lá
da cozinha: e Cida não
veio?
¾ - Ela e Ana Lúcia
devem chegar logo!
A aniversariante eufórica
começou a contar os
telefonemas que recebera dos
amigos e familiares.
Falavam sem parar fazendo
jus à fama feminina.
No início falaram amenidades.
A conversa corre solta, leve
e descontraída.
Depois vão surgindo
algumas confissões
do tipo: sinto falta dele
mas estou tão sossegada,
até mesmo descansada
pois o trabalho doméstico
diminuiu muito lá em
casa...
¾ - Eu também,
sobra tempo para eu bordar,
ler e ver televisão.
Lembram-se de que ele não
gostava que eu visse novela?
¾ - Pior era o meu
que não saía
de casa pra nada, e aos domingos
via futebol, voley, tudo quanto
era esporte, o dia inteiro.
¾ - Ah, eu confesso
a vocês que sinto saudade
dele nisso é interrompida
por uma das companheiras
é? Você sente
saudade dele assim?
Ao que ela completa: bem,
é uma saudade aliviada!
Eu penso: será que
existe isso? Saudade aliviada?...
Teve uma que declarou com
todas as letras do alfabeto:
eu já nem me lembro
dele, também me atormentava
tanto!
Mas a outra com olhos tristes
disse: gente, eu daria toda
a minha fortuna para tê-lo
de volta. Preferia estar pobrezinha,
lavando roupas para fora,
mas com o meu bem aqui.
Fez-se um silêncio total.
De repente o encanto parecia
ter acabado. As amigas solidárias
com sua dor ficaram sem saber
o que dizer.
Nisso, a dona da casa, na
desenvoltura que lhe é
peculiar, quebrou o gelo.
-¾ Amigas, estamos
todas no mesmo barco, somos
todas viúvas. Temos
que compartilhar nossa viuvez,
umas com as outras. Já
pensaram se fosse o contrário?
Se fossem "eles"
que estivessem reunidos aqui,
estariam chorando por nós?
Foi como se uma bomba cabeça-de-nego
tivesse explodido no meio
da sala. Elas se entreolharam..
Uma se levantou e colocou
um CD para tocar. Outras foram
ajudando a aniversariante
a colocar as travessas de
salgadinhos e doces sobre
a bela toalha colorida.
Alguém puxou a música:
parabéns pra você...
É gente, vamos comemorar
a vida!